terça-feira, 20 de outubro de 2009

Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro



Caixa Postal 147

Lisboa, 13 de Janeiro de 1935

Meu prezado Camarada,

Muito lhe agradeço a sua carta, a que vou responder imediatamente e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.

Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito, sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. Á parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe – Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque não sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha de dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.

Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro de natureza da Mensagem. Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a Mensagem não as inclui.

Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, devo dizer, com os olhos postos no prémio do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para a entrega dos livros, que primitivamente fora até ao fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares da Mensagem, fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.

Quando ás vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de Mensagem figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grandes – um livros de umas 350 páginas -, englobando as diversas subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiaria, que ainda não consegui completar.

Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com a publicação da Mensagem. Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque esta faceta – em certo modo secundária – da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português, parte deste mesmo livro) – precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com a Esquadria e o Compasso, pelo Grande Arquitecto.

(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha – e fará bem em supor, porque é verdade – que estou simplesmente falando consigo.)

Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) Plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.

Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da Mensagem, que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão totalmente remodelada do Banqueiro Anarquista; essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente este escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome este frase no sentido de Prémio Nobel imanente.) Depois – e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia – tenciono, durante o Verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que a Mensagem já manifestou.

Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo – penso-o com tristeza – pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental vestida de música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!

Creio que respondi à sua primeira pergunta.

Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…

Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já não me lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.

Desde criança, tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou antes, o meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chavalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já não me ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era não sei quê, um rival do Chevalier de Pas… Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem eu suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatuto, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, ouço, sinto, vejo. Repito: ouço, sinto, vejo… E tenho saudades deles.

(Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar -, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia irregularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sai própria inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo individuo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim, e parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos – um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi, dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive de desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão…

Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido – estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido - , diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!

Mais uns apontamentos nesta matéria… Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e do mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso) não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais dois cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de vago moreno mate; Campos, entre o branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem a Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

Como escrevo em nome destes três? Caeiro, por pira e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc. Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea em verso.)

Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo. Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes nesses mundos, em existências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos co-existam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do ocultismo, ou seja a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria Anglo-Saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se ele é Criador ou simplesmente Governador, do mundo. Dadas essas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentido; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandesriscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epigrafe ao meu poema Eros e Psyche, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente – o que é facto – que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência, desde cerca de 1888. se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho.

Creio assim, meu querido Camarada, ter respondido, ainda com certa incoerência às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.

Abraça-o camarada que muito o estima e admira,

Fernando Pessoa.

P.S. (!!!)

Além da cópia que normalmente tiro para mim, quando escrevo à maquinam de qualquer carta que involve explicações da orden das que esta contém, tirei uma cópia suplementar, tanto para o caso de esta carta se extraviar, como para o de, possivelmente, ser-ljhe precisa para qualquer outro fim. Essa cópia está sempre ás suas ordens.

Outra coisa. Pode ser que, para qualquer estudo seu, ou outro fim análogo, o Casais Monteiro precise, no futuro, de citar qualquer passo desta carta. Fica desde já autorizado a fazê-lo, mas com uma reserva, e peço-lhe licença para lha acentuar. O parágrafo sobre o ocultismo, na página 7 da minha carta, não pode ser reproduzido em letra impressa. Desejando responder o mais claramente possível à sua pergunta, saí propositadamente um pouco fora dos limites que são naturais nesta matéria. Trata-se de uma carta particular, e por isso não hesitei em fazê-lo. Nada obsta a que leia esse parágrafo a quem quiser, desde que essa outra pessoa obedeça também ao critério de não reproduzir em letra impressa o que nesse parágrafo vai escrito. Creio que posso contar consigo para tal fim negativo.

Continuo em divida para consigo da carta ultra-devida sobre os seus últimos livros. Mantenho o que creio que lhe disse na minha carta anterior: quando agora (creio que será só em Fevereiro) passar alguns dias no Estoril, porei essa correspondência em ordem, pois estou em divida, nessa matéria, não só para consigo, mas também com várias outras pessoas.

Ocorre-me perguntar de novo uma coisa que já lhe perguntei e que me não respondeu: recebeu os meus folhetos de versos em inglês, que há tempos lhe enviei?

«Para meu governo», como se diz em linguagem comercial, pedia-lhe que me indicasse o mais depressa possível que recebeu esta carta. Obrigado.

F. Pessoa.

As Rosas

As Rosas amo dos jardins de Adônis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

Síntese Ricardo Reis

Síntese Ricardo Reis

A nível de conteúdo:

-Filosofia epicurista, que defende o prazer do momento, a necessidade do corpo diem;

-A atitude estóica, num esforço lúcido e disciplinado, de não ceder aos impulsos dos instintos e aceitar a relatividade e a fugacidade da vida e do mundo.

-A busca da ataraxia (tranquilidade sem qualquer perturbação);

-A necessidade de nos darmos a ilusão da calma, da felicidade e da liberdade, com a consciência de que são inatingíveis;

-A apatia perante o que perturba e o mistério da vida;

-A crença nos deuses e nas presenças quase divinas que habitam todas as coisas.

Temáticas

-Sujeição do homem a força do destino;

-Fugacidade do tempo;

-Fragilidade da vida;

-Desapego dos bens matérias;

-Epicurismo;

-Carpe diem;

-Incosiência voluntaria;

-Paganismo;

Síntese de Álvaro de campos

Síntese de Alváro de campos
Em Álvaro a sensação e tudo. Numa atitude unanimista, procura unir em si toda a complexidade das sensações. Afasta-se, porem do objectivismo do mestre Alberto Caeiro, ao centrar a percepção das sensações no sujeito e não do objecto. Dai, o caminhar para a experiencia do tédio, da angustia, da desilusão e do absurdo.
Como Sensacionista e futurista cantara a energia e a força da civilização contemporânea e as sensações de sentir tudo de todas as maneiras.
A nível de conteúdo:
-As fases poéticas decadentista, futurista e intimista
-A expansão do tédio, do cansaço e da necessidade de novas sensações;
-A celebração do triumfo da maquina e da civilização moderna;
-A beleza da força e da maquina por oposição á beleza tradicionalmente concebida;
-A sensação como realidade da vida é base de toda a arte;
-O excesso violento de sensações;
-O péssimo e o abatimento face à incapacidade das realizações

Temáticas:
Fase Futurista: Sensacionista, elogio da maquina, ruptura com a lírica convencional.
Fase intimista: angustia, solidão, tristeza, cansaço, tédio, nostalgia da infância perdida.
Fase decadente: inadaptação, caução e tédio;

Síntese de Alváro de campos Em Álvaro a sensação e tudo. Numa atitude unanimista, procura unir em si toda a complexidade das sensações. Afasta-se, por

Síntese de Alváro de campos
Em Álvaro a sensação e tudo. Numa atitude unanimista, procura unir em si toda a complexidade das sensações. Afasta-se, porem do objectivismo do mestre Alberto Caeiro, ao centrar a percepção das sensações no sujeito e não do objecto. Dai, o caminhar para a experiencia do tédio, da angustia, da desilusão e do absurdo.
Como Sensacionista e futurista cantara a energia e a força da civilização contemporânea e as sensações de sentir tudo de todas as maneiras.
A nível de conteúdo:
-As fases poéticas decadentista, futurista e intimista
-A expansão do tédio, do cansaço e da necessidade de novas sensações;
-A celebração do triumfo da maquina e da civilização moderna;
-A beleza da força e da maquina por oposição á beleza tradicionalmente concebida;
-A sensação como realidade da vida é base de toda a arte;
-O excesso violento de sensações;
-O péssimo e o abatimento face à incapacidade das realizações

Temáticas:
Fase Futurista: Sensacionista, elogio da maquina, ruptura com a lírica convencional.
Fase intimista: angustia, solidão, tristeza, cansaço, tédio, nostalgia da infância perdida.
Fase decadente: inadaptação, caução e tédio;

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Heterónimos



Álvaro de Campos

Artigo principal: Álvaro de Campos

TABACARIA

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,

Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

_____________________________________________________

I am nothing.

I will never be anything.

I cannot wish to be anything.

Bar that, I have in me all the dreams of the world.

Álvaro de Campos: "Tabacaria" (The Tobacco Shop)


Entre todos os heterónimos, Campos foi o único a manifestar fases poéticas diferentes ao longo da sua obra. Era um engenheiro de educação inglesa e origem portuguesa, mas sempre com a sensação de ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo.

Começa a sua trajectória como um decadentista (influenciado pelo simbolismo), mas logo adere ao futurismo. Após uma série de desilusões com a existência, assume uma veia niilista, expressa naquele que é considerado um dos poemas mais conhecidos e influentes da língua portuguesa, Tabacaria. É revoltado e crítico e faz a apologia da velocidade e da vida moderna, com uma linguagem livre, radical.

Ricardo Reis

Artigo principal: Ricardo Reis

O heterónimo Ricardo Reis é descrito como um médico que se definia como latinista e monárquico. De certa maneira, simboliza a herança clássica na literatura ocidental, expressa na simetria, na harmonia e num certo bucolismo, com elementos epicuristas e estóicos. O fim inexorável de todos os seres vivos é uma constante na sua obra, clássica, depurada e disciplinada. Faz uso da mitologia não-cristã.

Segundo Pessoa, Reis mudou-se para o Brasil em protesto à proclamação da República em Portugal e não se sabe o ano da sua morte.

Em O ano da morte de Ricardo Reis, José Saramago continua, numa perspectiva pessoal, o universo deste heterónimo após a morte de Fernando Pessoa, cujo fantasma estabelece um diálogo com o seu heterónimo, sobrevivente ao criador.

Alberto Caeiro

Artigo principal: Alberto Caeiro

Por sua vez, Caeiro, nascido em Lisboa, teria vivido quase toda a vida como camponês, quase sem estudos formais. Teve apenas a instrução primária, mas é considerado o mestre entre os heterónimos (pelo ortónimo, inclusive). Após a morte do pai e da mãe, permaneceu em casa com uma tia-avó, vivendo de modestos rendimentos. Morreu de tuberculose. Também é conhecido como o poeta-filósofo, mas rejeitava este título e pregava uma "não-filosofia". Acreditava que os seres simplesmente são, e nada mais: irritava-se com a metafísica e qualquer tipo de simbologia para a vida.

Dos principais heterónimos de Fernando Pessoa, Caeiro foi o único a não escrever em prosa. Alegava que somente a poesia seria capaz de dar conta da realidade.

Possuía uma linguagem estética directa, concreta e simples mas, ainda assim, bastante complexa do ponto de vista reflexivo. O seu ideário resume-se no verso Há metafísica bastante em não pensar em nada. A sua obra está agrupada na colecção Poemas Completos de Alberto Caeiro. Álvaro de Campos
Vida: Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890, é engenheiro naval.

Estilo: Tinha um estilo de versos irregulares.


Ricardo Reis
Vida: Nasceu em 1887 no Porto, era médico e viveu muito tempo no Brasil.

Estilo: escrevia poemas de índole pagã mas num estilo de meia regularidade.




Alberto Caeiro
Vida: nasceu em 1889 e morreu em 1915, nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo, não teve profissão nem educação.

Estilo: Alberto Caeiro era instintivo e duo – consciente.




A poesia de Alberto Caeiro procura representar a natureza em si mas de uma forma objectiva, recorrendo a qualquer significado transcendental da realidade.
Caeiro, apologista de simplicidade total e do objectivismo absoluto, recusa doutrina e filosofia, ri-se das misticidades e só lhe interessa aquilo que capta pelas sensações. Pensa vendo e ouvindo, considerando que é importante aprender a não pensar uma vez que o pensamento metafísico deturpa a compreensão.

Conteúdo:
O realismo sendarial, com o sentido das coisas, reduzido há percentagem de com, da forma e existência.


2ª tópico


A importância da visão como a melhor forma de conhecer e compreender o mundo.


3ª tópico


A recusa do pensamento “Pensar é não pensar”



4ª tópico


O amor é natureza, que vê na sua constante renovação, acreditando na eterna realidade das coisas.





Importante:


Alberto Caeiro apresenta-se como um simples “guardador de rebanhos”, dai o seu desejo de integração e de comunhão com a natureza.

Para Caeiro “Pensar é estar doente dos olhos ”, ver e conhecer e compreender o mundo.

Mestre de Pessoa e dos outros heterónimos, Caeiro dá especial atenção ao acto de Ver.

Vida e Obra de Fernando Pessoa




Fernando Pessoa, nascido a 13 de Junho de 1888, viveu uma infância e adolescência marcadas por uma sucessão de factos que o viriam a influenciar profundamente, o que transparece, inevitavelmente, nos seus escritos.

Apenas com 6 anos de idade, confronta-se com a morte do pai e um ano depois, com a morte do irmão. Estas mortes significam uma profunda transformação na vida do poeta, nomeadamente no seio da família. Em breve, Fernando Pessoa iria conhecer um novo núcleo familiar e social, decorrente do casamento da mãe, D. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa, com o comandante João Miguel Rosa, entretanto nomeado cônsul interino em Durban, casamento que se realiza por procuração em 1895. Depois do casamento, mãe e filho partem para Durban, África do Sul, onde Fernando Pessoa viverá até à data do seu regresso definitivo a Portugal, no ano de 1905. Rapidamente perde o privilégio da atenção exclusiva da mãe já que passa a ufparti-la com o padrasto e com os sucessivos filhos que nascem deste segundo casamento de D. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa. Encontra refúgio no seu isolamento, na sua imaginação e atracção pela ficção (que se manifestara já desde os seus 6 anos, ainda em Lisboa,com a criação do primeiro heterónimo - Chevalier de Pas) que o levam a criar, em 1903, os heterónimos Charles Robert Anon e H.M.F. Lecher, nas suas leituras de Shakespeare, Milton, Byron, Poe, Keats, Shelley, Tennyson, entre outros, e nos seus escritos.

Vive, pois, grande parte da infância e adolescência (cerca de 10 anos), nesse país, onde recebe uma educação inglesa. Os seus primeiros estudos e os seus primeiros textos são feitos em inglês. Fernando Pessoa nunca abandonará a língua inglesa. É através dela que trabalhará, mais tarde, já em Lisboa, como «correspondente comercial». Apesar de vir a adoptar para os seus escritos a língua portuguesa, continuará sempre a escrever em inglês, seja nos seus textos críticos e notas íntimas, seja nos seus trabalhos de tradução de poetas ingleses, seja nos seus textos poéticos (à excepção da Mensagem, os únicos livros que publica são os das colectâneas dos seus poemas ingleses: "Antinous" e "35 Sonnets", e "English Poems" I-II e III entre 1918 e 1921).


Em Durban, percorre, com sucesso, os diversos graus de ensino até se candidatar, em 1903, à Universidade do Cabo. Em 1904 recebe o Prémio Rainha Vitória, concedido ao seu ensaio de inglês, prova de exame de admissão à Universidade do Cabo, realizado no ano anterior. Tendo a possibilidade de ingressar naquela universidade, Fernando Pessoa, como que respondendo a um chamamento da pátria, regressa, no entanto, sozinho, com 17 anos de idade, a Portugal, que nunca esquecera, associando-o sempre quer à imagem do pai quer à lembrança de uma infância feliz. Traz consigo o propósito de se matricular no curso superior de Letras de Lisboa.Vive nesta cidade, uma vida modesta, em casa de familiares e em quartos alugados. Apesar de efectuar a matrícula no curso referido, no ano de 1906, depressa se desilude com o ensino aí ministrado, não tendo sequer concluído o primeiro ano do curso.

Os seus conhecimentos de inglês constituirão fonte de sobrevivência para o poeta. Em 1908 inicia a profissão, no universo do comércio, como «correspondente estrangeiro». Dedica-se de modo profissional, ao longo da sua vida, aos trabalhos de correspondência comercial, sobretudo naquela que foi a sua língua mãe durante a adolescência. Esta actividade, permiti-lhe obter a independência económica suficiente para se dedicar à sua intensa actividade literária e intelectual.

A sua estreia literária realiza-se na revista A Águia, com a publicação de uma série de ensaios acerca da Nova Poesia Portuguesa. A colaboração com esta revista dura, contudo, pouco tempo. Em 1914, o poeta afasta-se da revista, já movido pela experimentação de novas formas literárias.


Na companhia de amigos como Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor, Fernando Pessoa ficará para sempre associado às novas correntes modernistas como o Paùlismo, o Interseccionismo e o Sensacionismo. A sua influência na literatura portuguesa deste século é indissociável da reunião do grupo na criação da revista Orpheu, na qual desenvolvem e expressam, de uma forma que causou escândalo mas também inúmeras adesões, as tendências modernistas literárias. Ao longo da sua vida, desde a revista A Águia, passando pela criação de Orpheu, Fernando Pessoa exerce a sua actividade literária através de inúmeras publicações. Destacamos a colaboração com a revista Portugal Futurista, de Almada Negreiros, em 1917, com a Contemporânea, de José Pacheco, a direcção e fundação da revista Athena em 1924, num género já distante de Orpheu, a colaboração, e desde 1927, com a Presença. De destacar ainda, num outro âmbito, a direcção, em parceria com o cunhado, da Revista de Comércio e Contabilidade, no ano de 1926, onde Fernando Pessoa publica artigos sobre temas sócio-económicos. Mas esta é já uma fase em que Fernando Pessoa passa a desenvolver a sua actividade num plano mais individualista. Os tempos do Orpheu estavam já distantes e o grupo desfeito: Mário de Sá-Carneiro morrera em 1817, no ano seguinte morreriam Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor. Outros membros do Orpheu estavam também afastados: Côrtes-Rodrigues vai para os Açores e António Ferro experimenta novos terrenos literários, dedicando-se ao jornalismo, à cultura e à política. Fernando Pessoa sentirá sempre saudades dos tempos do Orpheu, tal como dos tempos felizes da sua infância, anteriores à partida para a África do Sul.

O isolamento e a solidão do poeta parecem ter marcado a maior parte da sua vida, ao longo da qual, todavia, foi criando, no sentido literal do termo, novos amigos. O primeiro, aos seis anos, a que chamou Chevalier de Pas; os mais conhecidos, entre 1912 e 1914, a que chamou Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. A heteronímia é uma das facetas mais curiosas deste poeta e, para muitos, o resultado da desmultiplicação de um pensamento e de uma poética complexa e genial.

A produção literária destes três heterónimos foi intensa e acompanhou o poeta até bem próximo da data da sua morte. Para além destes heterónimos, Fernando Pessoa escreveu textos em nome de inúmeros semi-heterónimos e usando ainda diversos pseudónimos. Respondendo, desta forma, à ânsia de pluralismo, comum, aliás, aos artistas modernistas, o poeta encontra, através do desdobramento do seu EU, uma forma de percepcionar e expressar a multiplicidade do universo em diferentes perspectivas cada qual mediante as diferentes individualidades por ele criadas.

Para além da poesia heterónima e ortónima, Fernando Pessoa, nomeadamente entre 1925 e 1934, vai percorendo, com uma entrega significativa, os campos do mistério e do ocultismo, bem como o da sua missão patriótica. Nem um nem outro são, no entanto, novos para o poeta, já que desde cedo experimentara e manifestara um interesse pelas regiões do ocultismo e do esoterismo e sentira que tinha uma missão elevada a desempenhar.

A atracção pelo mistério, encaminha-o para campos ocultistas e iniciáticos, na busca de uma verdade e de um conhecimento espiritual, na busca da compreensão de si próprio e de um universo que transcende em muito o campo do imediatamente visível.

Estes campos são percorridos através da assimilação de princípios e orientações templárias e rosa-crucianas, por exemplo, e manifestam-se em muitos dos seus textos, como em Eros e Psique que se inicia com a epígrafe, chave orientadora da leitura do poema:"... e assim vedes, meu Irmão, que as verdades, que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade." - do ritual do Grau Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal, mas também em textos como Passos na Cruz, No túmulo de Christian Rosencreutz e ainda na Mensagem.

Trata-se de textos carregados de profundo simbolismo e mistério, próprios da linguagem iniciática que Fernando Pessoa parece ter experimentado, de imagens cujas chaves de descodificação deveriam passar, segundo o poeta, por uma simpatia em relação a esses símbolos e imagens, pela intuição, inteligência, a compreensão, mas ainda por um relação, pouco definida, com alguém superior ou transcendental que lançará a luz para a completa assimilação dos seus escritos.

Dotado de uma profunda sensibilidade, desde cedo experimenta experiências supra-naturais e procurara nos meandros do ocultismo a outra face do desconhecido. Vários dos seus textos transparecem, com a clareza que o assunto permite, um conhecimento e uma aproximação aos mistérios mais antigos, a uma mitogenia diversa e arcaica, a uma espiritualidade que nem sempre coincide com a religião cristã, aproximando-se claramente do paganismo.

A realidade oculta terá sido para o poeta uma forte presença ao longo de toda a sua vida. As vias do espiritual e do divino foram, simultaneamente, percorridas e acrescentadas à complexidade psíquica e poética de Fernando Pessoa.

O seu empenhamento patriótico esteve sempre manifesto na sua obra e nos seus projectos de intervir, via literatura, sobre a humanidade e sobre Portugal. Este patriotismo, manifestado em termos de Sebastianismo messiânico, e que se faz sentir logo na sua estreia literária através dos artigos da revista A Águia, publicados a partir de 1912, é ele mesmo indissociável do espiritualismo. O poeta via-se a si próprio como um missionário, um mensageiro, um intermediário entre a humanidade e um ser que a ultrapassa e transcende. Em diversos textos o poeta deixa transparecer a sua consciência de uma relação com o divino.

Este sentido patriótico movido pelo sentimento de uma missão culmina, em termos de produção literária, com a publicação, em 1934, da sua obra Mensagem. Aí temos, partindo da epopeia da diáspora de Portugal que deverá ser retomada e concluída, presentes a vontade de regeneração de um país estagnado, a referência a mitologias diversas, e o cruzamento do mito Sebastianista com as lendas arturianas; também aí se revela a espiritualidade do poeta e a sua busca incassável de Deus, ou do Graal, ou de uma qualquer verdade a juntar à sua identidade dispersa e complexa.

A ideia de missão, ao serviço de misteriosos mestres, foi de tal modo marcante em Fernando Pessoa que ela parece ter decidido a sua vida pessoal, nomeadamente a amorosa.

Ophélia Queirós foi por momentos uma fuga ao isolamento de Fernando Pessoa, bem como a revelação de si próprio como um ser capaz de amar. Mas foi sobretudo mais uma revelação da sua complexidade psíquica.

O único namoro conhecido de Fernando Pessoa decorreu em duas fases: a primeira, de 1 de Maio a 29 de Novembro de 1920, a segunda de 11 de Setembro de 1929 a 11 de Janeiro de 1930.

A primeira fase, a das cartas de amor ridículas, como diria Álvaro de Campos, termina com uma carta em que Fernando Pessoa diz a Ophélia que o seu destino pertence a outra lei. O poeta estava já profundamente implicado nos trilhos do ocultismo e dos percursos iniciáticos. Durante esta primeira fase do namoro, as cartas de Fernando Pessoa a Ophélia revelam uma paixão sincera, manifestada por uma linguagem terna, desprovida de intelectualismos. A ideia de casamento parece ter ocorrido a Fernando Pessoa, ideia implícita em algumas das cartas que preenchem os espaços deste namoro em segredo. No entanto, este namoro é desde cedo marcado pela incerteza, descrédito e desconfiança de Fernando Pessoa para com o amor sincero de Ophélia, para com a relação, para consigo mesmo e termina, então, com uma carta datada de Novembro de 1920, e com a revelação da obediência a Mestres e a pertença a uma outra lei.

Nove anos depois, Ophélia e Fernando Pessoa reencontram-se e o namoro recomeça. O reencontro é motivado pela oferta de Pessoa de uma fotografia sua a beber vinho no Abel Ferreira da Fonseca a Carlos Queirós, sobrinho de Ophélia. Esta, ao ver a fotografia, mostra vontade de possuir uma igual e o poeta envia-lha uma com a seguinte dedicatória: Fernando Pessoa em flagrante delitro. Ophélia escreve a agradecer e os encontros e o namoro recomeçam. Esta segunda fase é, todavia, muito diferente da primeira. Também Fernando Pessoa se revela muito diferente. A confusão de sentimentos, a perturbação psíquica manifesta-se com frequência através de cartas que revelam uma linguagem agressiva, um discurso com rasgos de alucinação e de dispersão. Segundo Ophélia, estaa já nem responde às últimas cartas.O contacto entre os dois mantém-se, no entanto, esporádico e cordial, até à morte do poeta. Fernando Pessoa trocou a perspectiva de um amor e de uma família por um outro chamamento, seja ele o da missão a desempenhar e o compromisso com tais mestres mistereriosos, seja o do compromisso com a sua própria identidade e com a humanidade. Abandonado a si mesmo, à sua vida intelectual e mística, ao seu isolamento, que, aliás, marcou toda a sua existência, é sozinho que Fernando Pessoa, já profundamente desgastado pela angústia que o mina, pela constante busca de si próprio, morre no dia 30 de Novembro de 1935, com 47 anos de idade. Uma morte que chega cedo - mais cedo chegara a muitos daqueles com quem conviviera -, mas uma morte para a qual o poeta parece ter caminhado conscientemente e sobre a qual reflectiu em muitos dos seus textos.


A morte chega cedo,

Pois breve é toda vida

O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.

O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tinha alcançado
Não sabe o que alcançou.

E a tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.

Fernando Pessoa - Cancioneiro